Começo este texto dizendo que ele se baseia em fatos verídicos. Ele foi inspirado na polêmica da Chili – que teve início nesta rede – e na repercussão dos meus stories lá no Instagram.
Vejam bem: já deixo claro que, o que eu condeno, é a minha realidade. Tenho prazer em trabalhar. Trabalho de sábado, domingo, não ligo de viajar a trabalho. Entrego o que tem que ser entregue e dou sempre o meu melhor: seja como funcionária, consultora ou professora.
Porém, o mercado está cada vez mais tóxico. E será que isso não é também culpa nossa? Vamos refletir um pouco sobre isso.
Se você ficou até aqui no texto, mas não sabe do que estou falando, seguem os prints dos posts que geraram a polêmica e que foram feitos por um dos gestores.
Expomos nossa “cozinha” porque contar histórias gera conexão e empatia.
Colocamo-nos no lugar do outro e pensamos: é isso. Aqui, no LinkedIn, temos valorizado (e muito) este tipo de postura.
De falar o que está acontecendo, teoricamente, para evidenciarmos boas e más práticas de mercado.
Mas, o que acontece quando tentamos mostrar uma “história de valor”, que, na verdade, é uma prática tóxica e por vezes desumana? O que ocorre quando tomamos nossos valores como uma verdade universal e não consideramos o outro ser humano?
Foi o que aconteceu neste caso. Você não pode cobrar do outro o que você faria. É desumano e não empático. Nossas realidades são diferentes. Assim como nossas expectativas e repertórios. Somos permeados por vieses conscientes e inconscientes, formados por meio de nossas experiências profissionais, de educação, formação cultural e grupos sociais. E temos que respeitar esse contexto. Principalmente quando somos líderes.
Não atribuo a culpa a uma pessoa ou à entidade “mercado”. Afinal, se nos calamos, se não falamos sobre, compactuamos com a prática. Já fiz job que demoraria uma semana para ser bem feito em 6 horas; parei carro em posto de gasolina para fazer postagem de última hora; atendi cliente de sábado à noite, domingo, madrugada. Faço e provavelmente continuarei fazendo. Mas, confesso, que não me orgulho disso.
Depois de ter feito os vídeos no Instagram, recebi vários comentários de amigues, ex-alunes, colegas de profissão. Todes estão exaustes. Alguns dos depoimentos se encontram abaixo. As identidades foram apagadas para proteger de retaliações (que sabemos que podem acontecer).
Quando era mais nova, meu pai me ensinou a seguinte prática: “Soraia, nunca ligue para alguém antes das 10 horas da manhã e depois das 10 horas da noite”. É claro que, naquela época, não tínhamos celular e uma série de recursos de comunicação que temos hoje. No entanto, já existia o bom senso. Algo que, a meu ver, se perdeu um pouco atualmente.
O que acontece é que as mídias sociais facilitaram muito o acesso às pessoas, tanto do ponto de vista pessoal, quanto do ponto de vista profissional, e isso fez com que a gente não tivesse mais um limite entre esses lados. Entre o que é a nossa vida pessoal e o que é a nossa vida profissional. Se por um lado acredito, como profissional e pesquisadora, ser muito difícil separar esses dois lados pelo contexto em que vivemos e acabei de expor, por outro lado, penso que as pessoas precisam ter o bom senso de respeitar os momentos de descanso do outro.
E, para mim, o que seria esse bom senso?
Seria entender o lugar do outro.
Um exemplo típico dessa cultura tão anormal e que nós acreditamos que seja normal é quando enviamos uma mensagem no WhatsApp para uma pessoa a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Não fazemos isso porque somos maus ou algo do gênero. Fazemos isso porque a nossa ideia nos pareceu ótima a uma da manhã e você não quer esquecer aquela ideia, não é mesmo?! A outra pessoa não precisa responder. Você só precisava passar a ideia para frente. No entanto, você parou para pensar que o problema de esquecer é seu e não da pessoa que está recebendo aquela mensagem? Você já parou para pensar no impacto negativo que essa mensagem – enviada de madrugada ou em um domingo – pode estar gerando na outra pessoa?
Vou dar dois exemplos interessantes. E vou omitir o nome dessas pessoas por motivos óbvios. O ano é 2017. Em sala de aula, uma aluna vira para mim e conta de uma maneira indignada: “professora, eu mando várias mensagens de várias matérias interessantes para os meus funcionários por WhatsApp e eles nunca leem. Isso é revoltante. Eu passo para o bem deles, porque é importante para eles verem aquilo”. Inicialmente, fiz dois questionamentos para ela: “O smartphone, a linha e o WhatsApp são corporativos ou de uso pessoa?”. Ela responde que é pessoal. Outra coisa: “Essas mensagens que você passa para eles poderiam vir de uma forma de comunicação mais oficial da empresa, como um e-mail?”. Ela continua indignada. Responde que o WhatsApp é mais fácil e eles que não têm boa vontade. Eu complemento: “a leitura em celular não é tão fácil assim. Você quer impor a alguém algo que para você é importante. E não é assim que as coisas funcionam”. Lembro perfeitamente que ela ficou muito frustrada e não entendeu a minha colocação, não entendeu os meus questionamentos. E, vale destacar, que, o que ela faz, é bastante recorrente no mercado.
Outro exemplo aconteceu numa live em que participei na quarentena. Falando sobre comunicação corporativa, o entrevistador contou que envia mensagens de WhatsApp para seus colaboradores em vários momentos do dia, mas que não cobrava uma resposta imediata. Aí, falei para o entrevistador no meio da Live: “Você não cobra uma resposta imediata, mas você é um gestor. Se essas pessoas são suas subordinadas, elas se sentiram compelidas a responderem, mesmo que não queiram. Você acha isso bom?”.
Esses dois casos sinalizam que o anormal, o não horário comercial, a disponibilidade 24/7, é o normal. Quando não deveria ser. Quando você coloca no outro um problema que é seu, estamos a um passo da sociedade do cansaço.
Quando tentamos dar conta de tudo no âmbito profissional e pessoal 365 dias por ano, tendemos à exaustão. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han falou sobre esse tema em seu livro Sociedade do Cansaço. Segundo ele, as patologias neurais são as que definem o século 21 e todas têm um ponto em comum: o excesso de positividade.
Sim, positividade e não produtividade. O que isso significa? Excesso de positividade acaba levando a uma sociedade do desempenho, em um cenário em que a produtividade é algo a ser almejado por todos os indivíduos.
Nessa Sociedade do Desempenho, acabamos tentando fugir um pouco da Sociedade Disciplinar, que foi apresentada pelo filósofo Foucault, no século 20, na qual o sujeito é vigiado constantemente. Já na Sociedade do Cansaço, do século 21, apresentado por Han, não temos uma sociedade disciplinar, e sim uma sociedade do desempenho, em que as pessoas acabam sendo empresárias de si mesmas. Assim, no lugar de proibição e leis, temos projetos, iniciativas, motivação.
A Sociedade Disciplinar ainda pode ser facilmente encontrada por aqui. No entanto, hoje nós caminhamos para essa sociedade do desempenho, está produzindo em excesso depressivos e fracassados.
Veja bem: essas são as palavras do Han. E, embora concorde com elas, talvez não usasse palavras tão fortes para escrever este texto.
Portanto, excesso de positividade, de desempenho, acaba gerando uma fadiga geral e se manifesta a partir de um excesso de estímulo. As pessoas que fazem mil coisas ao mesmo tempo são indivíduos que acabam desenvolvendo uma atenção mais ampla sobre as coisas, mas, ao mesmo tempo, uma visão mais rasa, o que se assemelha a atenção de um animal selvagem.
Ou seja, você tem muitas entregas, mas essas entregas não são profundas. Então, acabamos combatendo aquilo que é fundamental para nossa própria sobrevivência: o ócio criativo. Ele é fundamental para que a gente evolua intelectualmente em diferentes campos.
Segundo Han, o excesso de desempenho no trabalho, bem como esse excesso de trabalho, leva às doenças neurais. A pandemia exacerbou isso. Em home office, nós não temos uma rotina de trabalho tão saudável; além disso, ficamos em isolamento. Isso acabou levando mais pessoas a terem problemas como depressão, crises de ansiedade, insônia. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 89,2% dos profissionais que atuam nessa área viram uma piora da saúde mental dos seus pacientes no período da pandemia.
Percebam, assim, que não é teoria ou mimimi. É uma realidade. Uma realidade tóxica (e mundial).
Portanto, simplesmente parem de romantizar o trabalho 24/7. Parem de romantizar salas de descompressão. Parem de exigir dos outros posturas que são suas. Tenham mais empatia. E respeitem o lugar do outro. Todos temos direito ao ócio de vez em quando. Pensem nisso.
E para quem quer ter mais tempo de qualidade, sigam essas duas mulheres: Thais Godinho e Gabriela Brasil.